Ontem recebi um e-mail com o primeiro capítulo de um livro
chamado “O Casaco de Marx”. O livro parece
ser sobre a força constutiva do vestuário e a preservação dos traços de pessoas
nos objetos físicos. O importante na leitura foram estes dois trechos.
“A mágica das roupas está no fato de
que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa
forma” e “As roupas recebem a marca humana. As jóias duram mais que as roupas e
também podem nos comover. Mas embora elas tenham uma história, elas resistem à
história de nossos corpos. Duradouras, elas ridicularizam nossa mortalidade,
imitando-a apenas no arranhão ocasional” e “Por outro lado, a comida que, como
as jóias, é uma dádiva que nos liga uns aos outros, rapidamente torna-se nós e desaparece.
Por outro lado, a comida que, como as jóias, é uma dádiva que nos liga uns aos outros,
rapidamente torna-se nós e desaparece. Tal como a comida, a roupa pode ser
moldada por nosso toque; tal como as jóias, ela dura além do momento imediato
do consumo. Ela dura, mas é mortal.”
Hoje em dia muita gente acha que se vestir bem é acompanhar as tendências e ter um guarda roupa com as últimas novidades. Os
problemas que eu vejo de se fazer isso são: Primeiro você acaba
consumindo artigos que estão na ponta da curva, e por isso são mais
sucetíveis aos ciclos da moda. Segundo, é que pouca gente consegue realmente sustentar renovar o guarda roupa toda estação, e por isso, o provável é que a qualidade
seja jogada de lado para dar lugar ao volume. O resultado, como disse Bruce
Boyer, é que as pessoas que fazem isso parecem saber tudo sobre roupas e
tendências, exceto como apreciá-las. Querem o produto mais recente e as marcas
mais bacanas do momento, mas passam a sensação de que não gostam, ou
não sabem usar da maneira como deveriam.
Eu já fui assim. Grande comprador da Zara e até tive uma
calça laranja nos anos 90, na época que todos os meus amigos estavam usando. O resultado é
que eu acabei me desfazendo dessas peças sem nem ter tempo de torná-las
realmente minhas. Esse também é o problema com as coisas que são mal feitas, já que elas
não resistem ao tempo e o uso. O autor Marcel Basthos resumiu muito bem
quando escreveu que “assim como um bom vinho, uma escultura em bronze, ou uma
tela a óleo, é apenas com o passar dos anos que roupas e sapatos realmente de
qualidade adquirem o caráter próprio que lhes confere individualidade e
dignidade”.
No filme “The Philadelphia Story”, com Cary Grant, Jimmy Stewart e Katherine Hepburn, a pesonagem de Hepburn é uma jovem de família tradicional que vai se casar com um aspirante a político que tenta parecer chique e sofisticado. É aquele cara com o nó da gravata perfeitamente simétrico e tudo bem calculadinho. Uma de minhas cenas favoritas do filme é quando ele chega para andar de cavalo com um traje de montaria todo engomado. A personagem de Katherine Hepburn zomba dele, dizendo que ele parece ter saltado da vitrine de uma loja. Ela o joga no chão e, depois de passar um pouco de poeira nas calças e nas botas, diz “Agora está melhor”. Ele fica confuso e comenta que passou a vida inteira economizando para sempre estar com roupas novinhas.
Existe uma cor de calça, um tom de vermelho, que se chama “Nantucket
Red”. É um vermelho meio desbotado que é característico do vestuário conhecido como “preppy”. Esse estilo é derivado das famílias tradicionais de
classe alta dos Estados Unidos. Esse vermelho e outros
tons pastéis sempre estão nas listas de “como se vestir preppy” que os blogs publicam. Acontece que as as roupas dos preppys tradicionais não saiam
da loja com esses tons desbotados. Elas ficavam assim depois de serem usadas e
queimadas pelo Sol. Podiam ser facilmente substituidas, mas a roupa desbotada
era um símbolo de que o dono estava aproveitando a vida: velejando,
navegando e passeando por aí, tudo que somente um ricasso pode fazer.
É engraçado ver que neste contexto de muita afluência, e do dinheiro ligado a famílias antigas, um certo desleixo com sinais externos de riqueza pode ser um símbolo poderoso. Se você tem dinheiro suficiente para ficar comprando produtos de luxo, você também tem dinheiro suficiente para não estar nem aí se a sua calça é vermelhinha novinha, ou se alguém vai ver o “H” de Hermes gigante na fivela do seu cinto. Se você realmente anda a cavalo, as suas roupas de cavalaria vão mostrar isso.
Isso é ainda mais verdadeiro em países que tem uma ética protestante, pois as roupas são símbolo do trabalho e da jornada da vida. O Príncipe Charles por exemplo, é famoso por usar sapatos com reparos e por aparecer em públicos com ternos gastos nas pontas da manga. Todas essas roupas foram feitas sob medidas por grandes mestres. São impecáveis em caimento e em todos os outro sentidos. Os seus únicos defeitos não são realmente defeitos, são apenas a roupa incorporando a vida do seu dono. Usá-las com orgulho é um ato de respeito a vida que construiram dentro delas e também ao ofício do mestre que as fizeram.
Os jeans desbotados, tentam reproduzir a beleza das calças surradas da antiga classe trabalhadora. Quase toda as marcas "fashion" tem uma bota de couro todo surrado. Assim como o jeans, a bota era um calçado utilizado no campo e no trabalho pesado. São sapatos que sempre foram feitos para durar e aguendar muita pancada. Os calçados de couro com aparência de velhos tentam reproduzir artificialmente a pátina e cicatrizes que o bom material adquire naturalmente com o tempo. Tentam imitar a beleza do caráter e da forma adquiridos com o uso.
Eu acho que o conceito por trás disso vem da idéia de que se você aparece para uma profissão todo limpinho quer dizer que você nunca colocou a mão na massa. O mecânico só apareceu de roupa limpinha no seu primeiro dia de aprendiz. Ele sabe que sua roupa só vai ficar suja depois de muito trabalho duro. Ou sei lá, o calo nos dedos de um músico. É mais ou menos o mesmo pensamento do prepy tradicional e da personagem do filme filha da aristocracia. Eu gosto de pensar que se uma pessoa assim me visse com um par botas que já vieram detonadas, ela iria saber na hora, começar a rir da minha cara e me falar "Você não fez por merecer, garoto".
É por isso que eu gosto tanto de duas calças jeans que tenho. Não consigo parar de usá-las. Comprei ambas totalmente
brutas, sem nenhuma lavagem. Eram duras para caramba e bem rígidas. Hoje, elas são macias e tem um formato que eu sei que é meu. Estão marcadas pelas viagens que
fiz, as festas que fui, o tempo no ônibus com meus colegas do esporte e até o meu
primeiro emprego. Foi com uma delas que eu vi a neve caindo pela primeira vez, com outra eu subi até o topo de um vulcão no Hawaii. Passei o ano novo na Itália junto com minha família e namorada usando uma dessas calças. Alguns lugares mais desbotados são de andar de bicicleta,
outros furinhos e rasgados são de alguma aventura, tipo explorar uma
caverna em Budapeste. Um deles, tem a marca de celular no bolso que me lembra do meu nokia antigo. Ano passado eu coloquei na cabeça que estava na hora de aposentar uma delas, e comprei uma nova igualzinha. Até hoje não usei direito, mas serviu para fazer comparação, e é bom saber que tem uma tela vazia esperando para ser preenchida:
A.P.C. - Nova |
A.P.C. Usada. Ela era igual a calça ai em cima. |
Outra velhinha, a "Tradicional". Era toda azul escura. |
Quando eu estou triste porque passei muito tempo sentado no meu computador eu olho para esses dois pobres coitados, confortáveis para caramba, e me lembro de quanta coisa boa já fiz e ainda posso fazer. Minha dica: quando tiver escolha, não compre produtos desgastados artificialmente. Faça por merecer. Compre eles brutos e vá viver. Aproveite o processo.