O passar dos anos dos meus velhos jeans

31 de agosto de 2012



Ontem recebi um e-mail com o primeiro capítulo de um livro chamado “O Casaco de Marx”.  O livro parece ser sobre a força constutiva do vestuário e a preservação dos traços de pessoas nos objetos físicos. O importante na leitura foram estes dois trechos.

“A mágica das roupas está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma” e “As roupas recebem a marca humana. As jóias duram mais que as roupas e também podem nos comover. Mas embora elas tenham uma história, elas resistem à história de nossos corpos. Duradouras, elas ridicularizam nossa mortalidade, imitando-a apenas no arranhão ocasional” e “Por outro lado, a comida que, como as jóias, é uma dádiva que nos liga uns aos outros, rapidamente torna-se nós e desaparece. Por outro lado, a comida que, como as jóias, é uma dádiva que nos liga uns aos outros, rapidamente torna-se nós e desaparece. Tal como a comida, a roupa pode ser moldada por nosso toque; tal como as jóias, ela dura além do momento imediato do consumo. Ela dura, mas é mortal.”

Hoje em dia muita gente acha que se vestir bem é acompanhar as tendências e ter um guarda roupa com as últimas novidades. Os problemas que eu vejo de se fazer isso são: Primeiro você acaba consumindo artigos que estão na ponta da curva, e por isso são mais sucetíveis aos ciclos da moda. Segundo, é que pouca gente consegue realmente sustentar renovar o guarda roupa toda estação, e por isso, o provável é que a qualidade seja jogada de lado para dar lugar ao volume. O resultado, como disse Bruce Boyer, é que as pessoas que fazem isso parecem saber tudo sobre roupas e tendências, exceto como apreciá-las. Querem o produto mais recente e as marcas mais bacanas do momento, mas passam a sensação de que não gostam, ou não sabem usar da maneira como deveriam.

Eu já fui assim. Grande comprador da Zara e até tive uma calça laranja nos anos 90, na época que todos os meus amigos estavam usando. O resultado é que eu acabei me desfazendo dessas peças sem nem ter tempo de torná-las realmente minhas. Esse também é o problema com as coisas que são mal feitas, já que elas não resistem ao tempo e o uso. O autor Marcel Basthos resumiu muito bem quando escreveu que “assim como um bom vinho, uma escultura em bronze, ou uma tela a óleo, é apenas com o passar dos anos que roupas e sapatos realmente de qualidade adquirem o caráter próprio que lhes confere individualidade e dignidade”. 

No filme “The Philadelphia Story”, com Cary Grant, Jimmy Stewart e Katherine Hepburn, a pesonagem de Hepburn é uma jovem de família tradicional que vai se casar com um aspirante a político que tenta parecer chique e sofisticado. É aquele cara com o nó da gravata perfeitamente simétrico e tudo bem calculadinho. Uma de minhas cenas favoritas do filme é quando ele chega para andar de cavalo com um traje de montaria todo engomado. A personagem de Katherine Hepburn zomba dele, dizendo que ele parece ter saltado da vitrine de uma loja. Ela o joga no chão e, depois de passar um pouco de poeira nas calças e nas botas, diz “Agora está melhor”. Ele fica confuso e comenta que passou a vida inteira economizando para sempre estar com roupas novinhas. 

Existe uma cor de calça, um tom de vermelho, que se chama “Nantucket Red”. É um vermelho meio desbotado que é característico do vestuário conhecido como “preppy”. Esse estilo é derivado das famílias tradicionais de classe alta dos Estados Unidos. Esse vermelho e outros tons pastéis sempre estão nas listas de “como se vestir preppy” que os blogs publicam. Acontece que as as roupas dos preppys tradicionais não saiam da loja com esses tons desbotados. Elas ficavam assim depois de serem usadas e queimadas pelo Sol. Podiam ser facilmente substituidas, mas a roupa desbotada era um símbolo de que o dono estava aproveitando a vida: velejando, navegando e passeando por aí, tudo que somente um ricasso pode fazer.   

É engraçado ver que neste contexto de muita afluência, e do dinheiro ligado a famílias antigas, um certo desleixo com sinais externos de riqueza pode ser um símbolo poderoso. Se você tem dinheiro suficiente para ficar comprando produtos de luxo, você também tem dinheiro suficiente para não estar nem aí se a sua calça é vermelhinha novinha, ou se alguém vai ver o “H” de Hermes gigante na fivela do seu cinto. Se você realmente anda a cavalo, as suas roupas de cavalaria vão mostrar isso.

Isso é ainda mais verdadeiro em países que tem uma ética protestante, pois as roupas são símbolo do trabalho e da jornada da vida. O Príncipe Charles por exemplo, é famoso por usar sapatos com reparos e por aparecer em públicos com ternos gastos nas pontas da manga. Todas essas roupas foram feitas sob medidas por grandes mestres. São impecáveis em caimento e em todos os outro sentidos. Os seus únicos defeitos não são realmente defeitos, são apenas a roupa incorporando a vida do seu dono. Usá-las com orgulho é um ato de respeito a vida que construiram dentro delas e também ao ofício do mestre que as fizeram.

Os jeans desbotados, tentam reproduzir a beleza das calças surradas da antiga classe trabalhadora. Quase toda as marcas "fashion" tem uma bota de couro todo surrado. Assim como o jeans, a bota era um calçado utilizado no campo e no trabalho pesado. São sapatos que sempre foram feitos para durar e aguendar muita pancada. Os calçados de couro com aparência de velhos tentam reproduzir artificialmente a pátina e cicatrizes que o bom material adquire naturalmente com o tempo. Tentam imitar a beleza do caráter e da forma adquiridos com o uso. 

Eu acho que o conceito por trás disso vem da idéia de que se você aparece para uma profissão todo limpinho quer dizer que você nunca colocou a mão na massa. O mecânico só apareceu de roupa limpinha no seu primeiro dia de aprendiz. Ele sabe que sua roupa só vai ficar suja depois de muito trabalho duro. Ou sei lá, o calo nos dedos de um músico. É mais ou menos o mesmo pensamento do prepy tradicional e da personagem do filme filha da aristocracia. Eu gosto de pensar que se uma pessoa assim me visse com um par botas que já vieram detonadas, ela iria saber na hora, começar a rir da minha cara e me falar "Você não fez por merecer, garoto". 

É por isso que eu gosto tanto de duas calças jeans que tenho. Não consigo parar de usá-las. Comprei ambas totalmente brutas, sem nenhuma lavagem. Eram duras para caramba e bem rígidas. Hoje, elas são macias e tem um formato que eu sei que é meu. Estão marcadas pelas viagens que fiz, as festas que fui, o tempo no ônibus com meus colegas do esporte e até o meu primeiro emprego. Foi com uma delas que eu vi a neve caindo pela primeira vez, com outra eu subi até o topo de um vulcão no Hawaii. Passei o ano novo na Itália junto com minha família e namorada usando uma dessas calças. Alguns lugares mais desbotados são de andar de bicicleta, outros furinhos e rasgados são de alguma aventura, tipo explorar uma caverna em Budapeste. Um deles, tem a marca de celular no bolso que me lembra do meu nokia antigo. Ano passado eu coloquei na cabeça que estava na hora de aposentar uma delas, e comprei uma nova igualzinha. Até hoje não usei direito, mas serviu para fazer comparação, e é bom saber que tem uma tela vazia esperando para ser preenchida:

A.P.C. - Nova
A.P.C. Usada. Ela era igual a calça ai em cima.
Outra velhinha, a "Tradicional". Era toda azul escura.
Coisas velhas e gastas pelo próprio suor são de luxo. Percebe quanto esforço foi necessário para conseguri esse tipo de lavagem que a Ellus e a Diesel ficam tentando obter com tecnologia? Por quantos lugares eu tive que caminhar? São cicatrizes de guerra sem ter que tomar uma espadada ou flechada. Tem gente que é paga para ficar bolando novas lavagens, mas nunca vai conseguir fazer todos os risquinhos ficarem exatamente nos lugares certos. O resultado são aquelas marcas de atrito obviamente artificiais no meio da batata da perna ou em outro lugar que o ser humano não tem articulação.

Quando eu estou triste porque passei muito tempo sentado no meu computador eu olho para esses dois pobres coitados, confortáveis para caramba, e me lembro de quanta coisa boa já fiz e ainda posso fazer. Minha dica: quando tiver escolha, não compre produtos desgastados artificialmente. Faça por merecer. Compre eles brutos e vá viver. Aproveite o processo.

6 comentários:

  1. Sabe aquela história do 'não importa onde vc estudou e sim oq aprendeu'? Pois é, trazendo isso pro universo da moda vira algo como 'não importa onde vc comprou e sim como a peça te acompanhou'. Detesto shopping centers pq eles banalizam o consumo e prefiro lojas de rua, multimarcas ou flagships, pq vc só entra nelas qdo há um coup de foudre (amor à primeira vista) ou pelo menos uma inquietação estética. O ato de adquirir um objeto pode ser mecânico pra maioria das pessoas mas eu ainda pratico essa experiência sensorial que é entrar num lugar, sentir seu cheiro, percorrer seu espaço físico, sentir o efeito dos tecidos sobre a pele e sacar, ou não, que existe ali algo que vai além do consumismo tolo. Uma roupa pode ser apenas uma roupa mas, não raramente, pode tb ser/revelar o legado de uma vida. Com mais de 3 décadas de heavy shopping nos ombros, faço meu o leitmotiv forjado pela estilista britânica Vivienne Westwood... buy less, buy better.

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    1. Falou bem Augustuzs. Eu acho que as nossas lojas masculinas pecam um pouco na hora de transformar o ato da compra em uma experiência. Tudo, desde o traje dos vendedores até a apresentação do produto. Você trabalha com moda? Muito obrigado pelos seus comentários, eles acrescentam muito ao conteúdo do blog.

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    2. Trabalho com etanol mas moda é meu hobby favorito. Lojas e grifes masculinas são muito ruins no Brasil, seja por causa da extorsiva carga tributária, seja pela total ausência de curadoria por parte dos donos (os Sweetus desse mundo são aves raras). Oq podemos dizer de um país tropical como o nosso onde o algodão é considerado tecido 'de pobre'? Baixa qualidade, impostos abusivos, falta de visão/ originalidade/verdade no design em detrimento desse copy/paste vagaba que rola em todo lugar... enfim, são muitos detalhes. Lucas, obrigado pelo elogio, é mega gentil mas o mérito é todo teu. Se o blog não fosse interessante e o conteúdo genuinamente honesto/pertinente eu certamente passaria bem longe dele. Abs e bom finde!!!

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    3. Muito interessante o que você falou. Pelo visto é preciso ter muita coragem e acreditar bastante para tentar sair desse ciclo. No mais, as vezes eu sinto que sobra criatividade demais que acaba virando cafonice. Todo mundo tenta se destacar por ser diferente, ao invés de se destacar por ser bom. Tenho vontadede mudar de área e trabalhar com moda masculina, mas não sei as oportunidades que existem e nem por onde começar. Estou gostando muito dos comentários e de toda chance que tenho de interagir. Acho excelente para aprender mais e quem sabe descobrir onde posso me encaixar!

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    4. Até 1 ano e meio atrás, eu pensava em abrir uma multimarcas masculina. Viajei, conversei com estilistas e executivos mas no fim desisti. Como não há grifes de alto quilate por aqui (exceção pra Osklen que tem um trabalho interessante tanto em termos de design quanto de materiais), seria preciso vender marcas internacionais que, com essa nossa carga tributária escandalosa, ficam com preços estratosféricos e acabam só atingindo aquele chatíssimo/entediante nicho dos super ricos. Enfim, essa foi a minha decisão mas vc talvez dê certo contanto que saiba, pra começo de conversa, que roupa de homem vende bem menos do que de mulher. Olhar e feeling pra coisas novas e interessantes eu já vi que vc tem. Resta saber se a logística toda rola.

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    5. É, abrir uma loja é um investimento bem pesado. Acho que o negócio é tentar entrar para o corporate de alguma marca ou loja.

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