Boro: Retalhos do Japão

20 de fevereiro de 2013


"Boro" é uma palavra japonêsa que significa "trapos esfarrapados". Este tecido revela muita coisa sobre o padrão de vida das famílias japonêsas do século dezoito. O boro é carinhosamente remendado, reaproveitando trapos de algodão tingídos com anil natural. Cada pedaço é único e conta a história do coração de uma família e da alma de um povo. A beleza irregular do tecido captura a essência da sustentabilidade, deixando zero resíduos na produção textil artesanal. Para os criadores do boro, tudo tinha valor demais para ser desperdiçado, um conceito praticamente extinto no consumidor moderno.

Quer saber mais sobre a história do boro?


Região de Tohoku
O boro nasceu na região de Tohoku, no norte do Japão. Durante o período Edo (1603 a 1868), Tohoku era sinônimo de extrema pobreza. O norte congelado era frio demais para o cultivo de algodão ou seda e as plantações mais próximas ficavam a mais de 300 km de distância. As roupas, como a comida, eram uma questão de vida ou morte no inverno congelante e a solução da população da província de Aomori foi tecer roupas com o cânhamo. Quase tudo era tingido de azul pois a tinta do anil servia para afastar os insetos. Tudo era feito com este tecido rígido e aspero, que tem uma malha aberta, leve e arejada para o verão só que fria demais para o inverno. O produto final era o resultado de muito suor e trabalho, por isso era muito precioso.
Kimono de trabalho feito com cânhamo

Além de ajudar na fazenda, cuidar da casa e das crianças, as mulheres também plantavam, colhiam e processavam o cânhamo. Torciam e teciam e tingiam as fibras para criar o tecido, tudo manualmente. Costuravam camadas em cima de camadas remendando buracos e recheando tudo com fibras emboladas, um método prático de aumentar a durabilidade e o isolamento térmico das peças. O boro, é a forma que a função da sobrevivência tomou naquela região inabitável. Foram estes fazendeiros extremamente pobres que por necessidade acabaram criando uma estética têxtil maravilhosa.

Famílias inteiras dormiam abraçadas em baixo destes donja pesados, com várias camadas de tecido e recheados de fibras de cânhamo.
Foi só em 1892 que a primeira ferrovia chegou trouxe algum algodão, na forma de retalhos e restos, até o norte. O tecido podia ser usado para aumentar o tempo útil e o isolamento, e esses farrapos velhos se tornaram especiarias cobiçadissimas. Qualquer pedacinho pequenininho era guardado com muito carinho. Uma caixinha cheia de farrapos puídos era tudo o que uma garota levava quando se casava. Quando alguém morria, os familiares todos choravam enquanto brigavam para ver quem ia ficar com o kimono, pois a roupa era muito mais valiosa do que qualquer dinheiro.

Saki-Ori: Feito usando tiras de tecido
O processo de aproveitamento consistia em enxarcar tecido velho na mesma água que usavam para lavar arroz, e assim soltar e puxar os fios. Nunca desperdiçando nenhum pedaço, estes eram costurandos por cima camadas rasgadas e esfarrapadas da forma mais grossa e resistênte possível. O algodão também era cortado em fitas e tecido novamente usando urdumes de cânhamo. Todo tecido que sobrava era trançado e usado como faixas na cabeça pelos fazendeiros. E quando não havia mais condição de aproveitá-los, os pequenos pedaços eram queimados. Como queimavam lentamente eram muito eficiente para repelir mosquitos. Ou seja, o cânhamo vem terra e é usado para fazer roupas, depois de usadas viram retalhos, e finalmente retorna ao solo na forma de cinzas. Eram pessoas cuja frugalidade para roupas e amor pelo que tinham estava verdadeiramente enraizado nas suas vidas, muito antes da idéia ser reciclagem ser martelada na nossa cabeça.



O Japão é famoso pelas costuras geométricas que surgiram da nessessidade de fechar a trama aberta da malha de cânhamo. Fios de algodão eram usados para preencher estes espaços. Os pontos serviam para unir os tecidos e proteger o corpo. Precisam ser firmes mas permitir o movimento do usuário. A sensibilidade artistica e a habilidade foi se desenvolveu a partir desta tarefa de sobrevivência. Olhando bem para o tecido é difícil não imaginar que um dia existiu alguma pessoa que costurou cada um destes pontos e alguém que vestiu essas roupas até elas desmancharem e depois outro alguém que as restaurou para que a próxima pessoa usasse. De certa forma o boro me lembra que somos indivíduos, mas não sobrevivemos sozinhos. Estamos aqui graças a nossos pais, nossos avós, e todos os que vieram antes. É uma beleza não intencional que não pode ser atribuida a uma pessoa só.

Costura "sashiko", fios de algodão fechando os espaços na trama do cânhamo.

Uma toalha com costuras "sashiko" decorativas
É impressionante o esforço e o tempo gasto para fazer um pano durar mais. São duas, três, até mesmo quatro gerações reaproveitando o mesmo tecido.  A história por trás do Boro é uma história de pobreza e miséria; mas estéticamente ele realmente é um trabalho artesanal incrível. Tratando-se de consciência ecológica, técnica e emoção, estes tecidos são obras de artes fantásticas. Estamos tão acostumados com as conveniências modernas e com os produtos descartáveis que pensar em retalhos e pedacinhos de tecido como preciosidade pode até ser uma lembrança da tristeza de épocas passadas, mas será que a abundância e acessibilidade de tudo hoje em dia não nos fez perder de vista algo muito mais importante? Será que a vida não era mais vida quando as pessoas enfrentavam dificuldades fazendo, cuidando e usando até o último grão das coisas que tinham?

Um cobertor tamanho família
O trabalho dessas famílias não foi motivado pelo ego ou pela fama, muito menos pela vontade de criar algo belo. Foi apenas um resultado da necessidade ao criarem um objeto comum para uso no dia a dia. Mesmo assim, pelo posicionamento destes retalhos, das cores, e da padronagem das costuras tradicionais, percebe-se o fato de que mesmo vivendo na extrema pobreza, essas pessoas (mesmo que inconscientemente) tinham orgulho da estética dos objetos que usavam no dia a dia. O boro passa uma mensagem muito bonita sobre preservação, artesanato, sobre a relação do homem com a natureza e um talento que foi capaz de transformar abrigo em arte. 

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